sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Um pouco de minha fonte inspiradora


“É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico, senão de anti-científico. É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com, esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional. É preciso ousar para ficar ou permanecer ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos, mal pagos, desrespeitados e resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo. É preciso ousar, aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que nos expomos diariamente. É preciso ousar para continuar quando às vezes se pode deixar de fazê-la, com vantagens materiais” (Paulo Freire) [1].

Sou uma profunda admiradora de Paulo Freire. Ele foi, na minha humilde opinião, um filósofo no sentido mais completo e bonito da palavra. Ao mesmo tempo, eu o invejo. Como pôde um simples ser humano ter conseguido ver o mundo (e não apenas a educação) desse jeito tão sutil e cheio de esperança? Porque, falemos a verdade, quando estamos em sala de aula deparados com uma turma cheia de crianças ou adolescentes desafiadores, coisa rara de se sentir é esperança.
Voltando ao Paulo Freire. Tive contato, pela primeira vez, com uma de suas obras na disciplina de Filosofia da Educação. Para quem não me conhece, fiz licenciatura em Ciências Biológicas na UFRJ. Devo ter cursado essa disciplina mais ou menos no meio do curso, ou seja, nos idos de 1998. O professor que ministrava a disciplina era um pouco mal visto no meio acadêmico mas eu só fui conhecer o verdadeiro motivo quando me tornei professora substituta dessa mesma Faculdade de Educação. Estranho isso, quando somos alunos estamos tão imersos no nosso papel social de “aluno” que não nos damos conta da complexidade (em todos os sentidos) da academia e, até mesmo, do próprio sistema educacional. Enfim, esse professor (sendo “bom” ou não) teve o mérito de me apresentar ao Paulo Freire. Como era uma disciplina curta, de um semestre apenas de duração (não me lembro a carga horária), obviamente que não seria um estudo aprofundado. Então, lemos um resumo da obra de cada um dos filósofos da educação selecionados e ele propôs que o trabalho final fosse uma leitura – incluindo comentários – mais aprofundada de um deles. Quem pensou que eu escolhi o Freire se enganou. Acho que por causa dessa enorme “moda” em torno do construtivismo eu optei por estudar o John Dewey[2] (retomei a leitura deste autor anos depois e reconheci sua relevante contribuição para a educação em ciências). No entanto, após o término da disciplina, por curiosidade comprei o livro Pedagogia da Autonomia[3]. Mudou minha vida. Não, não é exagero. Mudou mesmo. Aquelas “regrinhas” que ele colocava naquele pequeno livro eram desafiadoras e encantadoras. E como era difícil ler aquilo... Ele usava palavras, termos, que eu nunca tinha ouvido, depois percebi que ele era bom em neologismos. Fiquei encantada com o texto mas se eu disser que ele significou tudo o que alguns anos depois ele viria significar para minha constituição como professora, naquela primeira leitura, eu estaria mentindo. Anos depois, em meu doutorado, redescobri Paulo Freire (graças ao Prof. Demétrio Delizoicov) e então estava um pouco mais madura para estudá-lo de fato.
A beleza da leitura está aí. (A leitura é um tema que me encanta.) Quando lemos um texto construímos sentidos que, provavelmente, não serão os mesmos daqui a algum tempo quando teremos novamente contato com aquele texto ou quando simplesmente nos recordamos dele. Quem diz isso é a Eni Orlandi, referência na Análise do Discurso[4]. Poder ler, reler, descobrir e redescobrir o que Freire diz em seus livros foi algo que eu aprendi com o tempo. O mesmo acontecia (acontece) comigo com letras de músicas. Há sempre novos sentidos vindo à tona, outras emoções aflorando.
Tem muita gente que diz que Paulo Freire era idealista, utópico. E aí eu volto à citação que dá início a este post. Se não fôssemos capazes de ousar, não apenas na educação mas na vida, o que seria da cultura humana? Indo mais além: o que seria até mesmo da Ciência? Sem ousadia, sem curiosidade, sem sonhos, sem perguntas nós morremos ou, simplesmente, deixamos de viver intensamente. 
Se não fosse a “utopia” de Freire estaríamos até hoje acreditando (e como tem gente que ainda acredita...) que alfabetizar é ensinar o “Eva viu a uva”. Tanto se fala atualmente em letramento e esse filósofo foi mais do que precursor ao dizer que alfabetizar ou aprender a palavra é saber fazer uma leitura do mundo. Nada mais libertador do que possuir a capacidade de ler criticamente o mundo social no qual estamos inseridos e, consequentemente, buscarmos a transformação frente às injustiças que aí estão. Isso é educar. E isso é muito bonito!



[1] Freire, Paulo. Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d’Água, 1997.
[2] Dewey, John. Democracia e Educação. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.
Dewey, John. Vida e Educação. 3. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1952.
[3] Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
[4] Orlandi, Eni. Discurso e leitura. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1993.
Orlandi, Eni. A leitura e os leitores. Campinas: Pontes Editores, 1998.

sábado, 17 de agosto de 2013

Escola pública, qualidade de ensino e a greve de professores

Como filha de professora sempre convivi com questões relacionadas à escola, mesmo quando elas não me diziam respeito diretamente. Minha mãe atuava no primeiro segmento do ensino fundamental e se aposentou pela rede municipal do Rio de Janeiro. Apesar dela ser sempre reconhecida pela qualidade de seu trabalho, sobretudo por pais e pelos próprios alunos, nunca tive uma visão entusiasta dela no magistério. Talvez porque eu apenas me recorde dela em sua fase final na docência, já muito cansada ao ter que corrigir dezenas de cadernos e redações, preparar trabalhos e provas e se desgastar muito emocionalmente com a vida particular de seus alunos. Não me lembro de minha mãe frequentar reuniões de sindicato tampouco se mobilizar em torno de reivindicações da classe ou em greves e paralisações.
Estou fazendo este breve retrospecto pessoal apenas para tentar recuperar historicamente a desvalorização do magistério e, mais especificamente, como esta vem se dando na rede de educação do município do Rio de Janeiro. Eu estudei na escola onde minha mãe era professora, em Botafogo. Tive um ensino de boa qualidade e, ao final da década de 1980, eu ingressava no Colégio Pedro II sem qualquer tipo de "cursinho". Atualmente, a localização da escola em bairros "privilegiados" da Zona Sul do Rio de Janeiro não é garantia de bom ensino (veja esta reportagem). Acho que aspectos organizacionais, estruturais e a própria política pública da educação carioca (ou melhor, o total descaso com políticas igualitárias de educação) fizeram com que a rede venha assumindo um desgaste com o qual os professores já não conseguem conviver.
Ontem lia o comentário de uma amiga em uma rede social que me chamou muito a atenção. Ela dizia que os mesmos professores que dão aulas nas escolas públicas muitas vezes também estão trabalhando em escolas particulares. O problema então seria a "qualidade" do magistério? Vale à pena continuarmos culpando os professores pelos péssimos desempenhos das escolas públicas nas provinhas do MEC? Será que a origem do problema não é muito mais política do que necessariamente "formativa"? (Isso sem querer entrar no mérito das tais provinhas...)
Desviar a atenção dos pais, da sociedade em geral, para a classe dos professores é no mínimo cruel. Culpabilizar professores "mal formados" é, no fundo, jogar a responsabilidade no colo de outros professores: os universitários. E, com isso, a classe como um todo tende a se desunir e não se mobilizar.
Retomando minha experiência pessoal. Minha mãe, na década de 1980, era capaz de manter a casa com seu salário. Hoje, seria impossível que ela tivesse o mesmo padrão de vida daquela época apenas com uma matrícula na rede. E aí entramos na questão da perda salarial. Mas esta, na verdade, é pano de fundo de um debate muito mais amplo sobre o que de fato tem se feito com a escola pública nas últimas décadas atribuindo a ela funções que não lhe compete e tirando dela o poder de atuação transformador fundamental na sociedade.
Não sou profunda conhecedora da história da escola pública no Brasil e não quero soar leviana nos meus comentários. Porém, acredito que as paralisações dos professores do Rio de Janeiro são indícios concretos de que essa classe está cansada. E este é um movimento que não se deu por "uma simples relação de consequência das manifestações do mês passado". É algo que é resultado de anos de abandono por parte do Governo. Os professores das escolas públicas estão cansados por não terem condições dignas de trabalho: salas superaquecidas, turmas lotadas, falta de infraestrutura, ausência de tempo para o planejamento, cobrança curricular absurda devido às avaliações sistemáticas do Governo, violência e insegurança, salários indignos, entre outras coisas. 
Que não haja leviandade ao criticarmos qualquer tipo (legítimo) de manifestação dos professores. Somente quem trabalha lá sabe o que é "ser" professor, sobretudo aqueles que resistem a tudo isso e lutam pela educação pública de qualidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O "velho" discurso oficial sobre a dicotomia teoria e prática na formação de professores

A velha questão da dicotomia entre teoria e prática nos cursos de formação de professores voltou a ser discutida em reportagem da semana passada na Folha de SP (confira aqui). O texto traz considerações importantes que não podem ser ignoradas por formadores de professores, porém gostaria de demarcar alguns pontos que acredito já estarem em pauta há algum tempo na agenda da comunidade acadêmica e que, o próprio Governo, vem negligenciando (sobretudo nas falas de seus representantes).
Um dos primeiros dados trazidos na reportagem é, a princípio, alarmante: "O trabalho apontou que nos cursos de licenciatura do país que formam professores de português e de ciências, a carga horária voltada à docência fica em 10%." A conclusão do Secretário Estadual de Educação de SP, Herman Voorwald, é "as licenciaturas deveriam ter menos conteúdos específicos das matérias e mais técnicas sobre como dar aulas."
Minha pergunta é: a solução para a questão da dicotomia entre "teoria" e "prática" nos cursos de formação de professores é a inserção de disciplinas "mais técnicas sobre como dar aulas"? Não seria esta uma visão retrógrada, altamente tecnicista? Será que alguém aprende a "técnica" sem refletir sobre seus objetivos de ensino, a seleção de conteúdos pertinentes para atingir a esses objetivos e os fatores mais próximos e relevantes de seu próprio alunado?
Por outro lado, o prof. da Faculdade de Educação da USP, Manoel Oriosvaldo, possui uma visão contrária ao discurso do secretário. Segundo ele: "Com o salário que se paga ao professor, é difícil convencer um jovem a assumir uma sala de aula". Além da questão salarial e de condições de trabalho ele diz, especificamente sobre os currículos das licenciaturas, que ao diminuir a parte teórica dos cursos o papel do professor é simplificado. Após anos de estudos consolidados no campo do currículo, após termos importantes filósofos educacionais brasileiros sinalizando a relevância do conceito de "práxis", pergunto-me porque ainda estamos discutindo essa questão. Já não existem diretrizes curriculares nacionais para cursos de licenciatura supostamente atualizadas? Qual o motivo desse imbróglio? A resposta pode ser aparentemente simples, mas tem embutida nela um ponto crucial que parece estar sendo "posta para debaixo do tapete" por quem faz políticas públicas em educação: não basta criar diretrizes curriculares, as relações que se estabelecem na instituição de ensino (neste caso específico, a universidade) acabam sendo as determinantes na organização curricular. Na academia há disputa de poder, de status, de dinheiro, de espaço, de reconhecimento pelos pares etc. Não há como achar ingenuamente que os professores que dão as disciplinas de "conteúdo específico" de uma hora para a outra abrirão mão de seus espaços nas grades curriculares ou que, tampouco, passarão a dialogar com os professores das disciplinas "práticas", de "ensino", "pedagógicas", como preferirem. A questão é muito mais profunda e não diz respeito apenas à boa vontade de coordenadores de licenciaturas. É uma questão política, cultural de cada instituição em particular.
Na reportagem, em referência especificamente a cursos presenciais de licenciatura de Ciências Biológicas mostra-se o seguinte resultado da pesquisa: 65% da carga horária é destinada aos conhecimentos específicos e "apenas"  10,4% são de conhecimentos específicos para a docência. Não há como analisar esses dados sem refletir sobre a história da constituição da licenciatura em Ciências Biológicas e sua relação intrínseca com o bacharelado. Não há como deixar de comentar sobre a marginalização que os professores das disciplinas pedagógicas sofrem em seus departamentos ou faculdades pelos próprios colegas. É, repito, uma questão histórica que não é equacionada em um passe de mágica mas que precisa ser debatida não apenas na esfera acadêmica mas sobretudo em instâncias oficiais nas quais são elaboradas políticas públicas educacionais.
Outro resultado apontado pela pesquisa na reportagem é a antiga formação em parceria entre Faculdades de Educação e "Faculdades Especializadas" (na minha formação, por exemplo, na UFRJ, fui aluna da FE e do Instituto de Biologia). Esse dado está em consonância com o que comentei acima.
Por fim, mas não menos importante, apenas uma observação sobre a citação do Sr. Ministro da Educação, Aloizio Mercadante, presente logo no início da reportagem: "Não dá para formar um professor só lendo Piaget". Sr. Ministro, não dá para formar professor quando os atuais professores são motivos de chacota em toda a sociedade (até mesmo entre os próprios professores) e tendo sua profissão completamente desvalorizada pelos últimos governos (refiro-me aqui a TODOS os governos brasileiros desde o Golpe Militar). Sr. Ministro, não dá para formar um professor pagando esse piso mínimo de vergonha aos professores atuantes. Sr. Ministro, não dá para formar um professor quando nosso próprio ministro da educação não é um Educador, quando esta figura não reconhece o papel dos museus na formação cultural dos alunos. Sr. Ministro, não dá para formar um professor só com bonitos discursos e belas palavras de políticos que insistem em nos decepcionar com sua trajetória política que em algum momento é posta por água abaixo na corredeira da ética da vida.